domingo, 14 de novembro de 2021

Pro - nomes

 Eu.

Tão sem razão quanto significado.
Tu.
Um apanhado de papéis batidos à máquina.
Ele.
Qualquer estranho a me observar.
Nós.
Existência confinada à uma Bagdá em decaimento.
Vós.
Senhoras esperando retratação.
Eles.
Autômatos caminhando pelas ruas.

Nada tem significado ou significância.
Somos ilusão de um deus psicodélico.

Sem título

 Tu me suicidas, tão docilmente.

Eu te morrerei, porém, num dia.

Eu conheceremos essa mulher ideal

e nevarei lentamente sobre sua boca.

E choverei na certa mesmo que eu entardeça,

mesmo que eu faça bom tempo.


Nós amareis tão pouco nossos olhos

e cairá esta lágrima sem

razão, certamente, e sem tristeza.

Sem.


Robert Desnos



quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Homeopatia cotidiana n° 12

 Na porta de casa, um pacote sem remetente.

Apenas um encadernado com o bilhete:

"Esse caderno:

um punhado de subpartículas de um mundo em decaimento; 

um álbum de instantâneos da Lua vista pelo gato;

uma mancheia de confetes de kryptonita."




quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Dois ou três versos que explicam quase tudo - 2

 (...)

Somos a resposta exata do que a gente perguntou

Entregues num abraço que sufoca o próprio amor...

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Romance da lua, lua



A lua veio à forja

com sua anquinha de nardos.

O menino a olha, olha.

O menino está olhando-a.


Lá no espaço comovido

a lua move seus braços

e exibe, lúbrica e pura,

seus seios de duro estanho.


– Foge lua, lua, lua.

Se chegassem os gitanos,

com teu coração fariam

anéis brancos e colares.


– Menino, deixa que dance.

Quando os gitanos chegarem,

te acharão sobre a bigorna

com os olhinhos fechados.


– Foge lua, lua, lua,

que já ouço seus cavalos.

– Menino, deixa-me, não pises

minha brancura engomada.


O ginete se acercava

tocando o tambor do chão.

Dentro da forja o menino

tem os olhos fechados.


Vinham pelo oliveiral

os gitanos, bronze e sonho.

As cabeças levantadas

e os olhos semicerrados.


Como canta ali o bufo,

ai, como canta na árvore.

Pelo céu a lua segue

de mãos dadas com um menino.


Lá dentro da forja choram,

dando gritos, os gitanos.

O ar a vela, vela.

O ar a está velando.


Federico Garcia Lorca

domingo, 12 de setembro de 2021

Não há nada de novo debaixo do sol - 2

 A pandemia,

Antes tão desgraçadamente cruel,

Que colocou-nos trancados em casa 

E dentro de nós mesmos,

Está pelo fim.

Não mais terei minhas tardes de devaneios,

Minhas madrugadas (a melhor hora) de criação. 

Terei que voltar ao chato mundo real. Mundo esse, cheio de obrigações, compromissos e gente intragável.

Não mais poderei escolher minhas companhias de acordo com afinidades. O mundo do trabalho, o mundo adulto, o mundo sério, me faz ter que conviver. 

Conviver com a insuportável gente "madura e responsável".

Terei que voltar a fingir ser uma "normal".

Não mais poderei me deleitar com uma tarde vazia e uma rede.

Parece-me que Delírio aceitou não encontrar seu irmão Destruição. Deixou a busca em segundo plano. 

Tudo volta ao normal, então. 

Mas Delírio continua comigo, pois o tempo voa e, mais que isso, o tempo quebra.

Tempus frangit






sábado, 11 de setembro de 2021

Homeopatia cotidiana n° 11

 Desligou o telefone e sentou no sofá.

 Era Rubens. 

Chamou-a de Calíope, como nos velhos tempos. Estaria precisando de inspiração, o velho Rubens?

Ah, que saudade... Guardava na memória todos os bons momentos. Todos os encontros mágicos. O dia em que sentaram à escadaria da pracinha, tomaram vinho... Quanta emoção houve naquele dia. Todos os dias de café com chocolate branco, que ela amava... Ainda ama! O encontro à beira do lago, lago tão significativo para os dois. Como era bom relembrar todos os encontros fortuitos e os combinados. Esses últimos, ganhando lugar dos por acaso quando a paixão ficou mais avassaladora. Depois veio o tempo e, com ele, as obrigações cotidianas. Se afastaram. Os encontros, agora, se resumiam a reuniões de trabalho, sempre uma cobrança por outro texto e mais outro... Uma publicação atrás da outra, já que era assim que ganhavam (ou perdiam) a vida.

Quanto tempo o tempo tem? Perguntou-se a musa. Quanto tempo a memória conseguirá guardar tantas boas lembranças antes de nublar-se, roubando de si mesma momentos mágicos vividos ou sonhados... 

Bem, voltou ao cotidiano, às tarefas corriqueiras... precisava voltar à edição de um texto para a revista. Rubens foi ficando, assim, como uma tela em segundo plano, como uma marca d'água quase imperceptível. Mas ainda estava lá.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Fragmentos oníricos ou "Aceita uma cartola de chá?"


 Aceito. 

Sempre aceitei. 


Gosto mais do de psilocybe. Mas já tomei de todos contigo. A camomila, como um afagar de cabelos, o de canela, como o toque dos dedos, causando vermelhidão... O psilo para aceitar o cotidiano enfadonho e a bebida púrpura... Ah, a bebida púrpura! Bebo para inebriar-me e esquecer que estamos tão longe e, ao mesmo tempo,  tão perto. Você está sempre presente em meu universo paralelo. Você é meu curinga preferido.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Tal qual Maiakovski

 Adultos


Os adultos fazem negócios.

Têm rublos nos bolsos.

Quer amor? Pois não!

Ei-lo por cem rublos!

E eu, sem casa e sem teto, com as mãos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado.

À noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre viúvas ou casadas.

A mim Moscou me sufocava de abraços com seus infinitos anéis de praças.

Nos corações, no bate o pêndulo dos amantes.

Como se exaltam as duplas no leito do amor!

Eu, que sou a Praça da Paixão, surpreendo o pulsar selvagem do coração das capitais.

Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos díágua.

Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores!

Doravante não sou mais dono de meu coração!

Nos demais - eu sei, qualquer um o sabe!

O coração tem domicílio no peito.

Comigo a anatomia ficou louca.

Sou todo coração - em todas as partes palpita.

Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha!

Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável.

Insuportável não para os versos de veras.

Vladimir Maiakovski 



domingo, 20 de junho de 2021

Homeopatia cotidiana n°10

 Fazia 2 ou 3 semanas que não tinha notícias de Rubens.

" Por incrível, não lhe estava fazendo falta. Será isso que acontece com os casais casados por 50 anos ou mais? Fazia ao menos 1000 anos que estavam juntos. O relacionamento  fora selado no Sonhar, não há nada que o desfaça. Ele saberia disso? Ela sim. 

Se ele não sabia, sentia. 

Apesar de se esforçar pra não sentir ou pensar, a Lua, túrgida e vermelha continuava a lhe esperar e rondar suas horas livres."

Pensou tudo isso em um átimo,  em um piscar de olhos. 

Voltou ao seu cotidiano. Às suas orquídeas, peônias, cactos, boldo,  alecrim. Aos gatos, aos escritos ainda não publicados, aos anos que se passaram... O passado andava muito presente em seus dias... Sinal de que estava envelhecendo e vivendo de lembranças. 

Rubens, Rubens... poderíamos ter dado muito certo. Nossos tempos não estavam sincronizados, nossos relógios usavam fusos diferentes. Foi só esse detalhe. Só esse...

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Dois ou três versos que explicam quase tudo. 1

A gente andou pela lua
Mas nunca andou de metrô...

domingo, 25 de abril de 2021

Nao há nada de novo debaixo do sol -1

 Tá lá o amor no meu coração. 


Nenhum palpite,
Opinião
Ou vontade de dizer alguma coisa.

(Nenhum capricho ou devoção, ainda assim o julgamento).

As mesmas paixões,
Há mais de 20 anos,
A mesma sangria,
A mesma loucura nesse mundo insano. 

(Todos os delitos no meu prontuário,
Ainda assim as mesmas atitudes incertas e incautas).

Mil novas paixões 
Desde os 15, 16 anos 
Todas procurando reciclar o mesmo ideal,
O mesmo complexo de Electra 
Há mais de dez mil anos. 

(Todas as culpas sobre mim,
Ainda assim a leveza da alma branca).

Nenhuma nova paixão, 
Nos últimos três meses;
Nenhuma com final feliz
Durante a vida inteira.

Saúde física e mental beirando ao descontrole,
Ainda assim a persistência do coração. 

Tá lá o amor no meu coração. 

terça-feira, 13 de abril de 2021

Homeopatia cotidiana n° 9

Não se afobe  não, que nada é pra já...


quinta-feira, 8 de abril de 2021

Homeopatia cotidiana n°8

 O que será que anda fazendo aquele velho babaca? - Por um minuto a imagem de Rubens lhe surgiu à mente. Como chegou ao ponto de lhe adjetivar assim? Era tão apaixonada por ele quando novinha... Achava lindo tudo o que ele escrevia e dizia... Lembrou dos cafés que tomavam juntos, clandestinos. Ele sempre lhe trazia um chocolate. Branco. Recordou o dia em que levou, sem que ele notasse,  uma folha batida à máquina. Que triste e linda poesia era aquela! Era sobre o criador de gatos, era sobre ele! Não resistiu e a enviou ao colega que cuidava da redação de um programa, desses fora do radar, que passava na tv cultura. Uma pena e um crime terem suplantado alguns versos e mudado o final. Tantas lembranças... Tantos sentimentos... Quem sabe ligaria pra ele no dia seguinte... Ainda teria que avaliar se valeria a pena correr o risco de não ser atendida, ou pior: ser maltratada. Voltou a cuidar de suas flores. Orquídeas e peônias. Ah, as peônias...

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Homeopatia cotidiana n° 7

 - O que você quer comigo? - esbraveja Rubens ao atender o telefone que havia tocado inúmeras vezes durante os dois ou três dias que resolveu sumir do mapa. Sumir dentro de si mesmo, pois continuava dentro do apartamento cuidando de suas duas gatas. 

- Quero saber se está bem, sumiu, não deu notícias. Além do que, me deixou em maus lençóis com o pessoal da revista online. Não manda nada faz 4 semanas. 

-Não vou mais mandar. 

- Como assim? Temos um contrato! E você me deve essa! 

-Vá pro inferno, Selene. Não te devo nada.  Vá você e o pessoal da revista também. Revista online é uma piada! 

-Eu devia saber, aliás, eu sempre soube. Você é um grosseiro, um velhote que vai acabar os dias sozinho catando cocô de gato! - desliga o telefone celular emputecida. Chora de raiva. Como pôde gastar tempo e sentimento com um cara patife como esse!?

"Mulherzinha intragável", pensa Rubens dando meia volta até o sofá, de cuecas frouxas, cabelo e barba por fazer... "Velhote", o que ela quis insinuar? Uma piada. Ela e todo o resto desse pessoal do "online". 

"Velhote "

.

.

.

"Velhote"... 

Adormece.


domingo, 17 de janeiro de 2021

Homeopatia cotidiana n°6

 - Poxa vida, Rubens! Qual é seu problema? - Selene deixa o quinto recado na velha secretária eletrônica. Desliga o telefone com raiva. Fica  pensativa... E se Rubens tivesse morrido? Se moribundo, precisando de auxílio? Nunca reclamava, mas ela sabia que a idade estava pesando sobre seu corpo. Das últimas vezes, não havia conseguido a antiga performance.  Nem ela, que fique registrado. Fazia tempo (que Rubens) não mandava algo inédito pra publicação. Depois que parou-se de circular os impressos, deu uma desanimada. Andava a dizer sobre os anos passados, lamentava o presente. Não a convidava com tanta frequência, a subir ao apartamento. Andava a beber demais  (ela sabia) e a comer de menos (presumia). Janelas não se abriam ao sol, girassóis ressequidos, algodão mofado. Ela passava ao menos uma vez ao dia para conferir. Não, não deve estar morto. Não é do feitio de Rubens morrer assim, sem anunciação. Ademais, cheiraria mal e a vizinha, cuidadora do alheio, logo daria a notícia (tinha deixado o telefone, para caso de alguma emergência). Mas que droga, Rubens! É bom você ter morrido, ou eu mesma lhe mato!

Divagando sobre a possibilidade de morte de seu melhor (e  único) cronista, adormeceu. Sonhou com um curinga a lhe dar bebida de cor púrpura. 

O sonho, sempre sonhado só... Onde andaria Rubens?